segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Agosto e o Nada

nem acendo um cigarro
nem te pago uma bebida
nem encontro saída
nem procuro a entrada
eu não me comovo
também não me alimento
e nem pago as contas
nem saio de casa
nem escovo os dentes
eu não como a namorada
eu não como nada
nem escondo os olhos
nem enxugo as lágrimas
não firo a pele (que não sara)
nem odeio
nem amo
nem atendo o telefone
nem acordo
nem lembro do meu nome
nem lembro do meu rosto
nem lembro do gosto que tem lembrar
eu não escrevo
eu não vejo, não enxergo, não olho
Agosto é fogo
e eu nem me queimo
e eu nem me molho

Que bom se ele soubesse!

Canção de Rock

Um cara me disse
nós somos filhos do vazio
e eu pensei:
puta que paríu
que indecência a minha
nascer filho do vazio
na cidade da inércia
e com as pernas abertas
então eu disse,
como quem bate na cara e dá as costas:
eu não sou filho de ninguém...
nem de mamãe, nem de ninguém...
eu me pari a mim mesmo
e do vazio eu sou o cio
eu sou o cio do vazio
o cio do vazio
o cio do vazio
o cio

domingo, 29 de agosto de 2010

Como quem te vê do chão para o teto

Para Ana Cristina César,
A teus pés
vejo o bicho que tu és
e que sou

Milágrimas

Para Clarice Lispector,

milágrimas.
quando eu cair, dê de comer aos esquilos!

Gainsbourg


sábado, 28 de agosto de 2010

Baby, nós somos um casal triste

Que isso não desminta meu membro em riste
o sexo é uma dança tétrica
e eu desmaio lágrimas em seu peito descoberto
para embebedar o nosso leito
para enebriar o nosso amor sofrido
Baby, nós somos um casal triste
do tipo que acaricia a dor
e a alimenta; e a agiganta
dá tempero a ela
cozinha
e janta

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

O Caminhante

O caminhante arranha a superfície da terra
e canta
canção que eu desconheço
mas que me alcança
porque eu me reconheço em tudo quanto eu desconheço
porque eu me reconheço no que eu não posso saber

O caminhante mastiga o pão do lixo
e náusea
a náusea que não me afeta
mas me machuca
porque o que não me afeta me machuca
porque o que não me afeta me despedaça

O caminhante rasga a carne nos escombros
e chora
um choro que a mim não molha
mas encharca
porque me encharca tudo aquilo que me seca
porque desaguo para aquele que peca

O caminhante corta os pulsos da estrada
e sangra
um sangue que a mim não suja
mas me anemiza
porque me anemiza aquilo que não se alimenta
porque me anemiza o que nunca se ameniza

O caminhante deflagra o feio da vida
e morre
uma morte que não me culpa
mas me atormenta
porque me atormentam os que não me culpam
pois se não me culpam sou tão podre quanto és/sois

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Petit Patrice

Profundos olhos cansados
A me olhar vagamente
Nada, senão inteira
Com sua dor inventada
Estrelas acesas
Apagada
Corta cebolas na mesa
E encharca a toalha com suas lágrimas

Bilhete Íntimo (23/6/2010)

Não somos o que fomos, somos outros. Um para o outro outro. Somos sinceros ao passo que somos o que podemos ser. O fato é que o que podemos ser faz de nós dois bichos opostos. Sim, não somos iguais e isso é bonito e alivia. Alivia porque não há Narciso e Narciso é nosso erro, sempre foi, mesmo antes de haver erro. Sinto pena do que há de mim nos outros e de mim você não tem nada (exceto a mim), por isso posso te olhar sem o peso da compaixão e podemos trocar socos e abraços sem que atinjamos a nós, apenas a um ou a outro - ou a um e outro. Há uma coisa que paira acima de nossas cabeças e que nos une, como um sexo imaterial, anulando tudo o que podemos querer pretender ser nos colocando frente a frente como se fóssemos um espelho em que não se reflete o que se é mas o que se quer. Por isso, por esse querer egoísta e altruísta ao mesmo tempo, consonante e dissonante, eterno e finito, imenso e ínfimo, mudo e ululante, apaixonado e não, é que não podemos simplesmente ir embora. Só acenda as lâmpadas de manhã, não há nada o que iluminar no escuro.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Pequena Tragédia

Derruba-me a força pedra quase leve
deixo-me falir
perco as batalhas mais risíveis
e ornamento a paisagem com meus destroços
sou o mais fraco dos homens
me deixo ruir frente a singelos algozes
caçoam de mim as mais medíocres pessoas
maiores que eu são todos
pois constituo-me de pequenas tragédias:
ossos quebrados; dentes sujos
sou dilacerado por meus planos defuntos
meu bolso vazio; meu bucho vazio; meu peito
vazio
poema sem fundo
e eu choro um rio
onde piso
e não limpo sequer os meus pés
imundos

domingo, 22 de agosto de 2010

Les Jours Gigantesques - René Magritte


Nós damos cartaz

Nossos corpos abençoados
bi - ó - tipos
forma, fluxo, tônus
pernas, poses, posers
somos demais
somos frugais
abençoados sejamos
nós e nossa receita
somos os primeiros a comer
e os últimos a cagar
somos os últimos a saber
e os primeiros a contar/apontar

Casa de Família

Pernas cruzadas para a sala-de-estar. Neste sofá não se sofre; sobretudo porque a mobília é bonita, a parede é pintada, a casa bem decorada... Não temos do que reclamar. Passeamos pelos cômodos para admirar paisagens nas quais não podemos interferir, porque a beleza é uma quadro de natureza morta na parede da cozinha enquanto apodrecem maçãs e melões e bananas na fruteira de metal inox. Por favor, não toquem em nada. E não se pode fumar no recinto. Prezamos pelo conforto e pelo ambiente agradável. Não se mexa, por favor, não se mexa. Admire, de longe, as fotos nas paredes; as paredes; o fato de não existirem manchas nas paredes; a metáfora das paredes; a piada das paredes; o delírio das paredes; a aspereza das paredes; a tristeza das paredes; o vazio das paredes.